O Banhado; extensa planície aluvial contigua ao centro urbano. Local de mitos e lendas, local de circulação dos “bons ares desta terra”, local onde a natureza descortina um quadro paisagístico maravilhoso. Tudo isso os joseenses já sabem, ouvem da mídia todos os dias palavras de enaltecimento das características naturais do Banhado. Mas o Banhado não é apenas isso; o Banhado é uma paisagem-habitada, habitada por gerações de cuidaram e preservaram aquela terra e fizeram-na seu lar. Local também de cobiça da classe dominante e das grandes corporações.
Tudo isso faz parte da história recente do Banhado. Na verdade o Banhado é muito mais antigo. O passado geológico da área do Banhado está condicionado à história geológica da formação da região do Vale do Paraíba. O Cone Leste Paulista, este vale no qual vivemos, cercado por duas serras: a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira formou-se na Era Cenozoica, a era do surgimento dos primeiros mamíferos a cerca de 65 milhões de anos atrás. O Vale do Paraíba se divide em três grupos: o grupo de Taubaté, o grupo de Caçapava e o grupo de Tremembé. São José dos Campos está sob o platô pertencente ao grupo de Caçapava.
Durante o período Terciário e o Quaternário da Era Cenozoica, os sedimentos do tabuleiro correspondente a área de recorte circular do entorno do Banhado sofreram um maior desgaste. O prolongamento do terraço aluvial em forma de pinça foi responsável pelo estrangulamento da calha aluvial do Rio Paraíba do Sul, determinando o aumento dos estreitamentos. Nos últimos 10 mil anos surgiu uma escarpa de meandro que se estendeu na forma de um cinturão que se afastou para o setor centro-norte da planície, propiciando a geração de solos de turfa e areias basais. Está é a história geológica do Banhado que se estende do Era Cenozoica há 65 milhões até os últimos 10.000 a.c.
A história arqueológica do Vale do Paraíba ainda é muito pobre, restrita a atividade de pouquíssimos arqueólogos. Durante o século XX, foram encontrados registros arqueológicos isolados em algumas regiões da cidade. Entre 2006 e 2009, durante as obras de loteamento do condomínio Alphaville na zona oeste, foi encontrado um assentamento associado a grupos de caçadores-coletores de aproximadamente 9 mil anos. Porém, no Relatório Final da Origem Arqueologia, empresa subcontratada pela PLANSERVI/COBRAPE, consórcio responsável pela construção da Via Banhado, a área do Banhado não apresentou indícios ou vestígios que possam indicar a existência de sítios arqueológicos.
O relatório final da Origem Arqueologia é no mínimo duvidoso. É preciso um diagnostico sério de uma equipe arqueológica que não esteja associada à prefeitura municipal de São José dos Campos. Ao viajarmos na História veremos que a cidade de São José dos Campos formou-se no platô sob o nome de Aldeia de São José. O primeiro aldeamento localizava-se na região do Rio Comprido. Área pertencente hoje aos territórios de São José dos Campos e Jacareí na forma de uma fazenda de gado. Os padres jesuítas exerciam o trabalho de evangelização e conquista dos índios para a Coroa portuguesa e Sua Santidade o Papa sob a direção do Padre Manuel de Leão. Quando a ameaça de ataques dos bandeirantes e as enchentes periódicas do Rio Paraíba ameaçaram a existência do aldeamento, os jesuítas transferiram a antiga aldeia para um novo local, provavelmente na segunda metade do século XVII. O platô onde se formou a Aldeia Nova era próximo, porém distante do Rio Paraíba do Sul, garantindo a segurança e a alimentação dos habitantes da Aldeia de São José.
Orientados pelos jesuítas, os indígenas construíram casas de taipa de pilão em forma de quadra e por muitos anos São José dos Campos estava circunscrita a esta pequena formação. É possível observar que o platô possui uma função estratégica na defesa da cidade, pois o Banhado propicia uma visão completa de possíveis avanços de inimigos pela Serra da Mantiqueira. Mas a cidade estava de costas para o Banhado e por muito tempo permaneceu assim. Nomeada como “Pântano Inútil” no croqui da Aldeia de São José de 1767, a área do Banhado foi ignorada por muitos anos por seus habitantes. Óbvio, o Banhado era uma das tantas áreas indisponíveis para a plantação, pois os habitantes não possuíam as técnicas necessárias para trabalhar naquela terra.
Durante todo o período colonial, no império e na república, São José dos Campos foi uma cidade muito pobre. A maioria de seus habitantes vivia da agricultura de subsistência, da caça e da pesca. Desde o século XIX a área do outrora “Pântano Inútil” já era conhecida como Banhado. Augusto Emílio-Zaluar, viajante europeu em peregrinação pela Província de São Paulo, assim relatou em sua passagem por São José dos Campos sobre o Banhado: “Uma das cousas mais dignas e observar-se nesta localidade são os imensos brejos, a que dão aqui o nome de banhados, e que se estendem em grande distancia aos pés da montanha em que está assentada a vila”.
Zaluar admirou-se com a beleza cênica do Banhado. Não é de se espantar que Zaluar nomeie o Banhado por brejo por que no passado o Banhado era uma extensa planície alagada. Lembremos que qualquer área de várzea é o segundo leito de um rio. Conforme as grandes chuvas elevavam o nível do rio às águas transbordavam pela várzea. O Banhado é uma área de várzea e as cheias do rio inundavam toda a planície.
O armazenamento das águas das chuvas e o acúmulo de material orgânico das cheias tornavam as terras do Banhado extremamente ricas para a plantação. Logo, no início do século passado, com a construção do ramal da estrada de ferro no extremo norte da concha do Banhado, as características aluviais do Banhado foram aproveitadas para o cultivo da cultura do arroz. Em 1930, uma grande população advinda das regiões rurais de Minas Gerais e do Vale do Paraíba, muitos arruinados com a crise do café, que procuravam melhores oportunidades de trabalho nas principais indústrias da cidade, instalaram-se nas ruas centrais do município. Construíram casas de pau-a-pique na Rua Siqueira Campos, Rua São José e no Banhado. É preciso relembrar que a população da cidade era extremamente pobre, e os novos moradores, além de perder suas terras com a crise do café, não encontraram postos de trabalho disponíveis. A solução encontrada foi à ocupação de terras públicas e o trabalho informal. Assim multiplicaram-se os agueiros, doceiros, padeiros, leiteiros e bicheiros.
No Banhado os primeiros moradores diversificaram a produção agrícola, até então focada na cultura do arroz, para a produção de outros gêneros, como: batata, mandioca, banana, tomate, alface, couve, etc. Hoje a população joseense nomeia depreciativamente o bairro como: favela do Banhado, mas pouco se conhece sobre as origens rurais deste bairro que se formou a mais de 80 anos. Pouco se sabe que a favela do Banhado possui um nome: Jardim Nova Esperança.
Foi ainda na década de 30/40 que o Banhado tornou-se um cartão postal, obra do prefeito sanitário Francisco José Longo. Na época, o Brasil vivia uma ditadura dirigida pelo presidente Getúlio Vargas. Apoiado no clima de fracasso da Intentona Comunista, Getúlio Vargas instaurou um golpe em novembro de 1937 sob o pretexto de um suposto complô comunista. Com o fechamento do Legislativo o Executivo adquiriu poderes absolutos. Prefeitos e governadores não eram mais eleitos democraticamente, mas sim nomeados como interventores pelo governo federal. José Longo foi um destes prefeitos interventores. Á ele foi incumbida à função de realizar o planejamento urbano da cidade, acompanhando o movimento regional do reerguimento da região do Vale do Paraíba.
Nesta primeira metade do século XIX, a cidade já era uma cidade estancia. A fama dos ares milagrosos de São José dos Campos atraia um número considerável de doentes. Não existia cura para a tuberculose e as grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro começaram expulsar os doentes para as cidades serranas, pois se acreditava que o repouso e a boa alimentação em cidades altas e de clima ameno favoreciam no tratamento da doença.
Longo tomou posse em 38, e no ano seguinte realizava todas as obras previstas para a melhoria dos serviços de distribuição de águas e esgoto, calçamento e alargamento das vias públicas, mesmo a custa de demolições. Em novembro de 1939 Longo desapropriou todas as casas de pau-a-pique da Rua São José, consideradas anti-higiênicas. Consta no plano a pretensão de descortinar a paisagem para melhorar a ventilação e a insolação da cidade, bem como criar o passeio público. No entanto, a obra de Longo foi determinante para o que conceituamos como a separação entre o Banhado-Paisagem e o Banhado-Território.
O que significa isso? Significa que até hoje para a maioria dos habitantes de São José dos Campos o Banhado é apenas uma paisagem. Criou-se uma mística entre a classe média e alta sobre o Banhado. Esta classe define o Banhado como uma espécie de “praia dos joseenses”. Ignora-se o fato que existem pessoas morando no Banhado. Os cidadãos de São José dos Campos não percebem que o Banhado é uma paisagem-habitada. Somadas a ideologia burguesa que universaliza a ideia que pobres e negros são “sujeitos perigosos”, os moradores do Banhado, quando não são ignorados pela população joseense, são taxados como bandidos. Isto acontece com todos os moradores de favela. A discriminação da população segue pelo ataque direto da Policia Militar. Esta organização antiquada não consegue formar a maioria de seus homens sem romper com a terrível associação: pobre igual bandido. Ainda é corriqueira e constante a presença terrorista da PM no Banhado.
O Banhado como território designa o território demarcado pelos moradores ao longo da história. Significa que os primeiros moradores e seus descendentes que ocuparam toda a extensão do extremo-norte da concha criaram um território. Quando criamos um território criamos gradualmente formas de apego a terra. Não é ilusão o fato de pessoas adoecerem quando são expulsas de seus lares.
Na década de 50, a construção da Via Dutra e a instalação do CTA favoreceram a vinda de diversas indústrias que se instalaram ao longo da rodovia, provocando o adensamento e urbanização de novos bairros que cresciam no entorno das fábricas. Como a terra e a renda estavam sendo concentradas nas mãos da classe dominante, não havia disponibilidade de postos de trabalho e terra para todos. O campo começara a industrializar-se e os meeiros e pequenos proprietários não possuíam condições de competir com o capital rural. Com efeito, a classe trabalhadora não teve alternativa a não ser ocupar legitimamente as terras mais desvalorizadas pelo capital. Foi neste momento que o número de moradores de favela da cidade sofre um acréscimo vertiginoso. O Banhado recebeu migrantes dos estados do Nordeste, Paraná e Minas Gerais. Com isto, a agricultura não era mais a atividade exclusiva dos moradores, pois já existiam muitos pedreiros, operários, domésticas, recicladores, entre outros. A partir daí acentuava-se cada vez mais a diferenciação entre o Banhado-paisagem e o Banhado-Território, entre o centro comercial e o centro rural. Nas palavras de Davi Moraes e Maurício Babau; o Banhado é “uma roça na cidade”.
Não é de se admirar, que a área foi alvo de inúmeros planos e propostas da prefeitura municipal. Houve o Parque Regional do Banhado da administração Sobral da década de 70, houve o Parque do Banhado de Bevilacqua dos anos 80, houve o Parque Ecológico de Pedro Yves dos anos 90, houve o Parque Natural Municipal do Banhado de Eduardo Cury nos anos 2000, e finalmente no momento presente temos a continuação dos planos e propostas da última gestão do PSDB herdadas pela gestão Carlinhos Almeida do PT.
Abaixo: Imagem 1. - Croqui delimitatório da Vila de São José, sec. XVIII.
O Banhado está inscrito sob a denominação de "pântano inútil".